As Manhãs em que Aprendemos a Correr Contra o Relógio
Uma carta para vocês — contada hoje
Meus filhos,
Hoje de manhã, no meio do nosso habitual bailado de mochilas, atacadores e chamadas de elevador, dei por mim a pensar: um dia, talvez não se lembrem de nada disto se eu não escrever.
Por isso aqui estou — a contar-vos esta história enquanto têm seis e nove anos, enquanto ainda andamos a acertar o passo, e enquanto as nossas manhãs continuam a ser um pequeno desafio diário que nunca sai igual.
Mas antes de vos falar desta manhã em particular, há algo importante que quero deixar claro:
Nada disto apareceu do nada.
A rotina que hoje seguimos — as camas feitas, a roupa preparada, os bons-dias tranquilos, o pequeno ritual do elevador — nasceu de meses e meses de tentativa e erro.
Aprendemos falhando.
Chegando atrasados.
Perdendo a noção do tempo.
À procura de meias desaparecidas que têm o talento de sumir exatamente quando mais precisamos delas.
Experimentámos, ajustámos, inventámos novas estratégias, frustrámo-nos, rimo-nos… e tentámos outra vez.
Tudo o que hoje parece organizado e natural só existe porque tropeçámos juntos até acertar no caminho.
6h00 — A Batalha com a Almofada
O dia começa sempre do mesmo jeito:
o despertador toca às seis, rasga a escuridão e exige que eu seja funcional muito antes da minha alma estar pronta.
Cinco minutos.
Só mais cinco.
A almofada chama-me sempre com aquela voz traiçoeira: “Manuel… não compliques. Fica.”
Mas depois aparece o sargento dentro da minha cabeça:
“Quem dorme perde! Mexe-te!”
E lá vou eu. Duche frio. Três minutos.
Dentes lavados.
Desodorizante.
100 push-ups e mais uns quantos exercícios para convencer o meu corpo de que ainda tem vinte anos.
Um pequeno favor que o “eu de ontem” faz ao “eu de hoje”.
E depois vou acordar-vos.
Acordar-vos
Estão sempre quentinhos, enroscados nos vossos lençóis, como dois pequenos sóis teimosos que ainda não querem nascer.
Lembro-me imediatamente da minha própria luta com a almofada minutos antes.
E por isso aquilo que não permito a mim… permito-vos a vocês:
mais cinco minutos.
Luzes acesas devagar — primeiro o corredor, depois o quarto.
Um “bom dia” baixinho.
Um esticar, um resmungo, um piscar de olhos.
Um começo doce antes da correria.
Vocês os Dois e as Rotinas que Construímos Juntos
Este é o momento que me deixa orgulhoso.
Depois de tanto repetir, insistir, ajustar, falhar e tentar outra vez, as vossas rotinas finalmente começam a fluir.
Levantam-se, vêm dar-me um abraço —
Manuel discretamente,
Ico com aquela energia explosiva que quase me manda ao chão —
e seguem para as vossas tarefas:
Camas feitas.
Dentes lavados.
Roupa vestida (preparada na noite anterior, porque o caos adora atacar logo de manhã).
Lancharas em cima da bancada.
Mochilas prontas à porta.
Enquanto isso, preparo o vosso pequeno-almoço e o meu café.
E lá em cima, o relógio da sala — o nosso ditador matinal — vai avançando.
Aponto para o ponteiro grande aproximar-se do seis:
“Quando chegar aqui, saímos. Não deixem o relógio ganhar.”
Às vezes antecipam-se e dizem:
“Pai, está quase no seis…”
É nessa altura que percebo que estão a aprender a ver o tempo — não a temê-lo.
O Final Apressado de Todos os Dias
Por volta das 8h10, 8h15, a calma desaparece e tudo entra em modo aceleração.
Corridas à casa de banho.
Atacadores que decidem fazer greve.
Meias que ressuscitam quando já não interessam para nada.
Eu, a tentar manter a calma… e a falhar com alguma elegância.
Depois vem o nosso ritual coreografado:
“Manuel, chama o elevador.”
“Ico, desce para abrir a porta quando chegar.”
Carrinho lá para dentro.
Elevador a descer.
Porta de casa fechada.
Eu pelas escadas.
O Ico à espera no rés-do-chão.
O Manuel com a porta do prédio aberta.
Às 8h30 estamos na rua.
Às 8h31 dentro do carro.
Às 8h34 a caminho.
Há dias em que isto por si só já merece medalha.
A Viagem — Onde as Lições se Escondem
A viagem para a Comporta é sempre um pequeno mundo só nosso.
Às vezes jogam ao “jogo das marcas” — cada um escolhe uma marca de carros e conta quantos aparecem na estrada.
Quem vir mais, ganha.
Mas hoje, no meio de um BMW e de um Tesla, o Manuel perguntou-me:
“Pai, o que é um physicist?”
Não “físico”.
A palavra que o Sheldon Cooper usa.
Expliquei:
“Um physicist é alguém que estuda como tudo funciona — o que vemos e o que não vemos, mas sentimos.”
Pensaste um pouco e perguntaste:
“Então é por isso que o Sheldon é tão bom a matemática?”
“Sim,” respondi. “Mas vocês não têm de ser o Sheldon. Só têm de estar à vontade com a matemática, porque a matemática é uma língua.
Uma língua universal.”
O português dá-vos clareza.
O inglês dá-vos alcance.
A matemática dá-vos liberdade.
Olhei para ti, Manuel, e lembrei-me da tua paixão pelo Último Samurai.
A disciplina, a repetição, o ritual — tudo isso te fascinou mais do que as batalhas.
É essa a verdade:
As rotinas não são castigo.
São estrutura.
São clareza.
São liberdade.
Até as nossas manhãs ensinam isso.
Chegar à Escola
Chegámos a horas.
Abri a mala, entreguei-vos as mochilas e as lancheiras, e vocês seguiram caminho para dentro da escola, já concentrados na vossa própria rotina.
Foi então que a vossa professora passou à minha frente.
E, lembrando-me das manhãs em que me tinha visto chegar atrasado, aproveitei o momento e atirei:
“É a última vez que entram antes da professora!”
Ela percebeu imediatamente e soltou um riso cúmplice — daqueles que nascem quando duas pessoas reconhecem a mesma história por trás de uma frase.
Vocês já iam lá dentro, alheios a isto.
A piada era entre mim e ela.
Um pequeno momento de vitória depois de tantas manhãs improvisadas.
E meus filhos…
Quando um dia olharem para estas rotinas, espero que vejam mais do que a correria, o relógio e a eterna luta contra as 8h30.
Espero que vejam:
A ternura dos cinco minutos extra.
A disciplina da roupa preparada na véspera.
O trabalho de equipa no bailado do elevador.
A curiosidade nas perguntas.
A coragem nas tentativas.
O amor escondido em cada passo aparentemente banal.
Porque esta é a verdade que aprendi convosco nestes primeiros anos:
As pequenas rotinas que repetimos tornam-se nas pessoas que nos tornamos.
E as manhãs que parecem banais são muitas vezes as que mais nos moldam.
Saí da escola a sorrir, a ouvir o meu podcast, a caminho do estúdio — grato pelos dois rapazes que me ensinaram que, mesmo no caos, há alegria, sentido e beleza.
Meus filhos,
tenho orgulho nos pequenos homens que já estavam a começar a ser.
E ainda mais orgulho nos homens que um dia se tornarão.
Pai